in , 19.Set.2010
«Vidas suspensas há dois anos após fogo no prédio da Avenida»
Telma Roque
«O prédio pombalino situado na Avenida da Liberdade, em Lisboa, atingido há dois anos por um fogo, definha sem dignidade. O proprietário virou-lhe as costas, a ele e aos moradores, que desde então têm as vidas viradas do avesso. É uma tempestade que não passa.
O incêndio destruiu paredes, roubou-lhes os bens e suspendeu-lhes as vidas. Nos primeiros dias não puderam sequer retirar a roupa que poderia estar a salvo, o dinheiro, as chaves do carro ou mesmo documentos tão essenciais como o Bilhete de Identidade. Foi como se a própria existência se tivesse extinguido com as chamas.
O entulho enegrecido pelo fogo vai convivendo com paredes caídas e as marcas de fugas feitas à pressa. Ainda há pratos de comida na mesa, aspiradores no meio de assoalhadas, loiças que ficaram por lavar e comida petrificada nos frigoríficos e arcas. Há também caixotes com objectos cujo valor sentimental obriga a resguardar até ao dia em que possam voltar a ter alguma utilidade. Mesmo tisnados, todos juntos, seriam capazes de contar a história das famílias se tivessem o dom de falar.
Os moradores percorrem o caos amiúde, mas não conseguem evitar entradas furtivas, grafitos, beatas e outros sinais do vandalismo. Emocionam-se. Ficam com nós na garganta. Uma garrafeira, que tinha sobretudo whisky, foi totalmente desbaratada. As garrafas foram bebidas até à ultima gota e abandonadas ao acaso. Um velho cofre foi vítima de várias atrocidades, mas quem o tentou abrir desistiu batido pelo cansaço. Seria, contudo, uma vitória inútil. Só tem papelada. Nada mais.
“Inércia. Falta de consideração e de respeito”, desabafam, em uníssono, Iñaki Paiva de Sousa, Maria Eduarda e Luís Costa, três dos moradores daquele prédio centenário, todos eles ali nascidos em décadas afastadas no tempo. “Estamos com vidas provisórias, mas é um provisório que está a tornar-se definitivo”, lamentam, admitindo recorrer aos tribunais, já que nem o proprietário – Junta de Freguesia das Galveias – ou a Câmara tomam medidas.
Os laços de vizinhança construídos em tantos anos estão agora desfeitos. Maria do Rosário, uma idosa que habitava o terceiro direito, foi para uma pensão e os vizinhos perderam-lhe o rasto.
Ana Lúcia, governanta do prédio de cinco pisos, ou “menina Ana”, como era carinhosamente tratada, abdicou do usufruto do primeiro andar, onde sempre viveu, e de 1/3 das rendas a que tinha direito por testamento, entre o 3º andar e as duas lojas, situadas no rés-do-chão (a sapataria assumiu as obras e reabriu; a agência de viagens fechou). A Junta instalou Ana Lúcia num lar de idosos, pagando as despesas mensais.
Luís Costa, o irmão e os pais estão os quatro acomodados na casa de uma tia, na zona de Benfica. Ajudam esta familiar nas despesas e continuam a pagar escrupulosamente a renda do apartamento da Avenida da Liberdade. Tiveram que endividar-se no banco para comprar bens essenciais que perderam e Luís, 36 anos, desfez-se do seu automóvel.
Maria Eduarda, mãe de Luís, ainda hoje não se conforma com tanta destruição. ?A minha bisavó morou neste prédio, tal como a minha avó. Eu e os meus filhos nascemos aqui?, sublinha, enquanto acomoda caixotes e lamenta o estado empoeirado do lustre de uma das salas.
António Ramalho, que ocupava o quinto direito, perdeu muito mais do que as obras de arte que coleccionava. Ainda digeria a morte do pai quando vieram as chamas. Meses depois, faleceu a mãe. Ficou sozinho. Ou está num hotel ou ausenta-se para o estrangeiro em trabalho. Parece que nada mais o prende por cá.
Iñaki Paiva de Sousa, o irmão e a mãe, que residiam num dos quintos andares foram morar para casa de uma amiga da família. Os avós de Iñaki, que moravam no quarto esquerdo, nunca chegaram a ver o aspecto monstruoso em que ficou a casa. Estavam em Espanha, de onde são naturais, e não mais voltaram. “Não era prudente. O meu avô tem 90 anos e ficaria muito desgostoso”. Estavam a remodelar a casa.
O dono do número 21 da Avenida da Liberdade é o mesmo de muitos outros prédios e campos agrícolas espalhados pelo país: a Junta de Freguesia das Galveias, em Ponte de Sor, no Alentejo, património que herdou do riquíssimo Comendador José Godinho de Campos Marques, falecido em 1967, aos 80 anos.
A Junta das Galveias, presidida por António Augusto Delgadinho, nada mais fez na Avenida da Liberdade do que colocar uma cobertura provisória e remover parte do entulho, embora tenha já sido ressarcida pela seguradora, em cerca de 800 mil euros.
A Junta ainda abriu um concurso para lançar uma empreitada de obras, mas anulou-o quando se viu confrontada com os elevados orçamentos apresentados pelos concorrentes. Não voltou a preparar mais nenhum concurso.
Também não tem mostrado disponibilidade para dialogar com os seus inquilinos. “Nunca está disponível para falar. E podia ter tratado dos nossos realojamentos. A poucos metros, na Rua da Glória, tem um outro prédio com apartamentos vazios”, critica Iñaki Paiva de Sousa, sublinhando que a Junta não tem sabido gerir o vasto património que lhe foi oferecido. Prova disso, diz, é que, o segundo andar do número 21 da Avenida da Liberdade, por exemplo, está vago há duas décadas. São 14 assoalhadas distribuídas por 400 metros quadrados.
Ao JN, o autarca afirma, sem rodeios, que não pretende fazer obras. “Ter património não é o mesmo que ter dinheiro disponível”, alega, admitindo a hipótese de celebrar um protocolo de cedência do prédio. A Câmara de Lisboa, por sua vez, vem garantindo há mais de um ano, que está a avançar com um processo de execução coerciva. Mas nada fez.
O incêndio que causou danos colaterais no número 21 da Avenida da Liberdade, começou verdadeiramente no número 35 de um edifício contíguo que estava devoluto há vários anos, propriedade do Fundo de Investimento Imobiliário Fechado “Libertas I”.
Do número 35, nada ficou além das fachadas. Todo o miolo ruiu. Os escombros somavam vários metros de altura. Fizeram-se as obras de contenção da fachada principal, mas a unidade hoteleira de quatros estrelas para ali projectada não saiu do papel. Ao que tudo indica, por falta de verbas.
Ninguém foi responsabilizado pelo incêndio. O Ministério Público arquivou o caso, mas apurou que, à data do incêndio, a porta de entrada se encontrava acessível a qualquer pessoa, por ter sido arrombada. No interior, havia restos de velas, beatas e artefactos ligados ao consumo de droga.
As chamas terão deflagrado ao nível do segundo andar, num compartimento localizado nas traseiras do imóvel, que indiciava ter alguma utilização, como armazém e como habitação.
A investigação conseguiu mesmo identificar dois homens, que desempenhariam as funções de “zeladores” do imóvel, tanto mais que este era frequentemente visitado por sem-abrigo e toxicodependentes.»