terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Dívida de Gratidão...


Numa época em que o nosso país e todo o Mundo enfrentam uma época de depressão e desânimo, gosto de pensar e falar de pessoas boas, daquela gente que passou pelas nossas vidas e deixou uma marca, algo que nos ajudou a fazer aquilo que somos hoje.

Sempre ouvi os mais velhos dizerem que «Ponte de Sor é mãe para os de fora e madrasta para os que cá nasceram.» Infelizmente, esse adágio foi-se confirmando ao longo da minha vida, o que talvez possa explicar o pouco espírito bairrista que germina nas pessoas naturais de Ponte de Sor. Mas adiante.

E é precisamente sobre uma pessoa que, embora não tenha nascido em Ponte de Sor, muito jovem aqui se estabeleceu. E que Ponte de Sor não tratou bem, reconhecendo o trabalho desenvolvido ao longo dos anos.

Falo, claro, do
Dr. João Martins Gomes Pequito,

ou Dr. João Pequito ou, mais simplesmente, do Dr. Pequito.

O Dr. Pequito foi, desde os meus tempos de estudante, uma referência importante e, quiçá, uma das pessoas que mais me influenciou na escolha da profissão que tenho hoje.

Nasceu em Lisboa em 27 de Fevereiro de 1928 em Lisboa, onde se licenciou em Filologia Germânica, tendo dedicado toda a sua vida ao ensino, primeiro em vários Liceus de Lisboa e, desde 1967/68, em Abrantes, onde foi Vice-Reitor.

Em 1975 foi transferido para a recém criada Escola Secundária de Ponte de Sor, onde leccionou até se reformar, em Junho de 1991.

Foi uma figura multifacetada. Lembro-me, particularmente, de uma entrevista que deu à jornalista Maria Elisa (acabadinha de entrar na RTP), onde falou do amor que tinha pelas crianças e por teatro de fantoches, se não estou em erro. Devíamos estar no início da década de 70 e foi um vizinho meu que, no Café Matuzarense, me explicou que aquele senhor era pontessorense e o marido da Dra. Maria José Mattos Fernandes, a proprietária da Farmácia Mattos Fernandes. E eu, petiz e curioso, lá fiquei a ouvir aquele senhor falar de teatro, de bonecos, sempre com um sorriso e aquela melena que, já na altura, era a sua «imagem de marca».

Foi amigo de Virgílio Ferreira, de David Mourão Ferreira, de José Régio, de Vieira de Almeida...

Foi cronista em vários jornais, como o «Diário de Notícias» e «Ecos do Sor», onde escrevia regularmente.

O seu extraordinário conhecimento de línguas (o seu sotaque «british» era algo que me dava um prazer enorme escutar!) permitiu-lhe desenvolver contactos com o Partido Socialista Inglês, tendo fundado o Partido Socialista de Ponte de Sor, em 1975.

Faleceu no dia de Natal de 1999, com 70 anos.

O Dr. Pequito tem sido, ao longo dos tempos, maltratado por todos aqueles que têm o dever de perpetuar o exemplo de um homem íntegro e bom.

Neste 10 anos que se seguiram após a sua morte, a única homenagem que vi prestarem a este Homem de letras, pedagogo, humanista e culto, foi um artigo assinado pelo Jorge Traquete no suplemento O2 do «Ecos do Sor». Celebrava-se, então, o sexto aniversário da sua morte. Dizia:

"Estas linhas pretendem assinalar os seis anos da morte de um homem que alguém classificou como “um pioneiro da democracia”. Um homem convicto que, enquanto Reitor do Colégio de Abrantes, democratizou o ensino, numa cidade onde os vínculos ao antigo regime eram por demais evidentes e até férreos! Um gentleman na verdadeira acepção da palavra."

Foi sempre uma pessoa do seu tempo, as suas aulas de Inglês e Alemão eram sempre um acontecimento, conseguia motivar os alunos sem «estratégias», «projectos», «planificações», sem nada daquilo a que o eduquês nos habituou, somente o seu amor pelo ensino e pelas línguas.

Quando o Dr. Pequito ainda estava em Abrantes, ainda como Reitor, em finais de 1972, lembro-me de ter terminado o meu 2º ano na nova Escola Preparatória de Ponte de Sor e ter que optar: ou ficaria em Ponte de Sor e matricular-me-ia na Escola Técnica ou teria que ir para Abrantes, onde poderia continuar o Liceu e seguir a minha paixão pelas línguas.

Foi a primeira vez que falei com ele. O meu pai deixou-me à porta do Liceu e eu lá tive que procurar pelo gabinete do Reitor.

Entrei no gabinete, a medo, e encontrei-me perante «o Reitor», esmagado pelo poder que aquela figura imponente me transmitia. Logo ali me pôs à vontade, ao saber que eu vinha de Ponte de Sor. Apresentei-me, disse qual era a minha família, tudo isso e apresentei-lhe o meu dilema. Lembro-me de ele me dizer:

«Se gostas de línguas, nada a fazer. NÃO VAIS para a Técnica, isso era um crime. Tens de ir para o Liceu!»

Logo assim, tão peremptório que eu logo não vacilei. Dei o meu nome, inscrevi-me e ele, com um olhar matreiro, explicou-me que havia outros como eu e que, se houvesse mais, haveria a hipótese de se criar uma turma em Ponte de Sor.

E assim foi. No ano lectivo de 1972-73 foi criada, não uma, mas sim duas turmas que fundaram a Secção de Ponte de Sor do Liceu Nacional de Abrantes! E tudo isto pela influência vocês sabem de quem!

Outro episódio que gosto de referir diz respeito ao período do pós 25 de Abril, 1975 ou 1976. Eu estava no 6º ano, na altura chamado de 1º Ano do Curso Complementar dos Liceus e o Dr. Pequito era o meu professor de Inglês. Eu tinha desenvolvido alguma cumplicidade com ele, em parte por ser meu professor mas também por o meu pai ser dono do café onde o Dr. Pequito gostava de tomar a sua bica e os seus «proletários». E o que eram esses «proletários»? Eram os «uísques proletários», brandy com 7Up!

Lembro-me que, pelas tardes, gostava de ir até ao café ler «O Mundo Desportivo». E eu dava com ele inúmeras vezes a rir, ao ler as notícias desportivas! Mas que enigma... que um dia descobri, quando lhe ia levar o «proletário»: dentro do jornal, conseguia manobrar um livro de anedotas, na altura chamadas picantes, de nome «Riso Mundial»!

Vendo-se descoberto, lançou uma das suas gargalhadas que enchiam qualquer sala... com aquele sentido de humor sempre presente, sempre inteligente!

Adorava «meter-me com ele» sobre aquilo que nos dividia: eu era Benfica, ele Sporting! Quando o Sporting perdia, era vê-lo se semblante carregado, mas quando o azar calhava ao Benfica, afivelava o seu maior riso trocista e ninguém o parava!

Do que eu conheço do Dr. Pequito, só teve uma homenagem em vida. Foi o Núcleo Sportinguista da nossa cidade que lhe promoveu uma sentida homenagem, das mãos do então Presidente Sportinguista, Sousa Cintra.

Ainda do artigo do Jorge Traquete, nos «Ecos do Sor», em 2004, respingo mais estas palavras, que ajudam a compreender o carácter da pessoa que foi o Dr. Pequito:

"Apenas por uma vez tentei uma entrevista com ele. Escrevia eu para o “Primeira Linha” de Abrantes. O Dr. Pequito recusou. Lembro-me das palavras dele: “Penso que não tenho muito a dizer. o leves a mal mas fica para a próxima”. É uma das imagens que guardo com grata memória, a forma como declinou a entrevista e que atesta o perfil deste homem. Os ingleses chamam-se low profile. Eu chamo-lhe humildade."

Tendo prestado tantos e tão bons serviços na Escola Secundária de Ponte de Sor, quiseram perpetuar o seu exemplo, propondo, em 1998-99 o nome do Dr. João Pequito para nome desse estabelecimento de ensino. Infelizmente, a Assembleia de escola recusou! Por que motivos? Esse é um mistério que irá perdurar para sempre, pois nem sequer lhe foi proporcionado uma festa de despedida para aqueles que o quisessem homenagear!

E que dizer da nossa Câmara Municipal? Em Fevereiro de 2000, a Assembleia Municipal aprovou por unanimidade (por unanimidade, repito!) homenagear este distinto humanista com o nome de uma rua. Conforme é fácil de constatar, em 10 anos nada foi feito! Será que não foram criado bairros novos? novas ruas? E que outros nomes foram atribuídos? Só dá vontade de rir... para não chorar!

Partindo de políticos, não me espanta. Porque, como disse Alphonse Carr, «
O esquecimento é a morte de tudo quanto vive no coração.» E existirá criatura mais sem coração do que um político?

E já vou longo, mas este era um post que eu já há muito queria fazer. Acho que devia isso à memória do Dr. Pequito.

E, quem sabe, poderá despertar algumas consciências adormecidas! O Dr. Pequito, o seu exemplo, a sua postura de coluna direita merece-o!

Como nota final, quero agradecer ao Jorge Traquete e ao jornal «Ecos do Sor» por me terem facultado o artigo de homenagem ao Dr. Pequito, bem como as fotos. Um grande obrigado do Papagaio!
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5 comentários:

Romicas disse...

Este poste também me diz muito, pois em 1983, O Dr Pequito, como sempre lhe chamei, foi a primeira pessoa que me recebeu quando, pela primeira vez, dei aulas. Acabadinha de sair do ninho parental e depois de apanhar a primeira multa e mudar o primeiro pneu do carro, foi com as mãos todas sujas (as minhas, claro) que me apresentei no Conselho Directivo. E lá estava o Dr Pequito, sorridente, amável, mandando-me ao w.c. do gabinete para lavar as mãos e, depois, atender-me como "caloira" que era nestas andanças do ensino.
Sempre foi uma pessoa simpática, respeitadora e brincalhona. Dizia que a minha filha era bem "filha-da-mãe" enquanto que o filho era filho-do-pai, sempre com um sorriso e o seu ar um tanto desajeitado.
Também nunca percebi qual a razão para nunca ter sido feita uma despedida na escola, como sempre se tem feito a quem se reforma. Mas se calhar, até ele próprio não terá querido. Não creio que fosse pessoa para bajulações fúteis e fáceis, daqueles que, se calhar, lhe terão virado as costas enquanto esteve no activo.

FAIRES disse...

Olá caro amigo Benfiquista,
Até nestas breves palavras se conclui que as boas pessoas são do Sporting.
Tive o prazer e honra pessoal de conhecer o Dr. Pequito, já ele não exercia como "Mestre de Escola".
Conheci-o como o dono da farmácia. Sempre afável, simpático, com palavras sempre alegres quando falava dele. Diversas vezes o tive de acordar fora de horas por uma caixa de aspirinas qualquer.
Sempre com um sorriso, atendia e vendia-me o que era preciso.
Foi um "Homem" que gostei de conhecer e com quem sempre gostei de falar.
Ponte de Sor realmente por vezes, é, como várias vezes ouvi, dito por filhos da terra, " uma má mãe mas uma boa madrasta ".
Rafael, obrigado por estas palavras, e obrigado também por recordares o saudoso Dr. Pequito.

Um abraço,

Jorge Neves disse...

Meu caro amigo papagaio daltónico :
Hoje, como se não tivesse nada para fazer (!!!) , vim aqui visitar-te, meu amigo.
Coloco aqui este post porque estava em falta contigo.
Um destes dias, a propósito de uma actividade em que estive (e estou) envolvido enviei um mail a propor adesão ao blogo onde fiz a minha campanha política. Nos inúmeros endereços que tinha, estava o teu - “Papagaio Daltónico”. Apesar de não ser “meu” eleitor por residir noutra Freguesia e noutro Concelho, recebi de ti um e-mail muito amável, solidário e cheio de amizade.
Por motivos vários ( esta mania parva de não ter tempo para ter tempo) não respondi como deveria ser minha obrigação. É hoje, amanhã, ou melhor depois de amanhã e… já passaram alguns meses.
Hoje vim ao teu “reduto virtual”.
Vim felicitar-te pelo teu blog e dar-te um grande abraço com muita amizade.
Emocionei-me ao ler a tua homenagem ao Dr. Pequito. Julgo que a gratidão deveria ser um dos princípios que deveríamos ter relativamente aos outros. Acredito que não andamos, nas nossas actividades, à procura de medalhas ou de reconhecimentos mais ou menos óbvios e inevitáveis. Contudo, acho que o Dr. Pequito talvez merecesse mais reconhecimento público por parte de quem representa a população. Não se justifica o esquecimento. Não se compreende que não se concretize uma deliberação (por unanimidade !!! ) de um acto simples e pouco dispendioso de atribuir um nome a uma rua de Ponte de Sor a uma personalidade tão distinta.
Que povo é este que não homenageia os seus melhores ?
Outra homenagem, em forma de lembrança, de recordação. Na verdade achei curiosíssimo a tua chamada de atenção para o Matias Correia. Lembro-me desses tempos de meninice feliz de ler embevecido uma notícia de um jornal da altura – O Século, talvez – onde se falava do nosso pugilista pontessorense, que fora campeão nacional. Como tudo era diferente. Não era muito habitual vermos retratados na imprensa pessoas que eram nossas conhecidas, que eram do nosso convívio. Daí o nosso orgulho por conhecermos pessoas “importantes” e dignas de serem figuras públicas.
O Matias tinha uma grande estampa física. Era um grande atleta, como recordavas. Lembro-me de que nesse jornal figurava uma foto sua com as luvas de boxe e em posição típica de boxeur. Tinha o cabelo encaracolado, penteado para trás – tipo galã.
Morava na Rua de Santo António - onde existiu uma loja de confecções do Zeca Borrego ; mais à frente ficava o Posto da GNR e um pouco depois, ainda do mesmo lado, havia uma oficina de mármores. Na outra esquina existia o Café Portugal, onde jogávamos bilhar e líamos os jornais.
Ai que saudades, ai, ai !

Um abraço grande

Jorge Neves

Papagaio disse...

Grande Jorge (ou shall I say "Mr President"?)

Foi óptimo saber notícias tuas. E saber que a distância que nos separa (fisicamente falando) não faz esquecer as origens, o que fomos, onde fomos...

Belos tempos esses, quando "os Vascos eram Santanas" e as coisas, não obstante a falta de liberdade que grassava no país, eram mais límpidas e claras.

Que saudades dos tempos da Preparatória, do nosso grupo, eu, tu, o Chico Esteves, o Santana, o João Luis, o tonto do Filipe, masi o seu karaté, e hipnotismo de galinhas...

Acho que nessa época sabíamos o que era gratidão, simpatia... Não imaginas o quão difícil é ensinar os meus miúdos de 10, 11, 12 anos a dizer "obrigado", "com licença"... Será o chamado "sign of the times"? Ou a maldição do novo milénio?

Um abraço para ti, Jorge, para a São e restante descendência.

O teu amigo Papagaio

Conceição Venâncio disse...

Sr. Dr. Pequito foi meu professor de inglês no Liceu velho, e claro, meu Reitor.
Fiquei muito feliz por ter encontrado este Blog, ao fazer uma pesquisa com o seu nome. Subscrevo, inteiramente, tudo o que escreveram sobre esta Pessoa Fantástica, que recordo com muita saudade, e tão importante foi na minha vida. UM GRANDE SENHOR, UMA PESSOA MARAVILHOSA, QUE VIA EM CADA UM DE NÓS 1 FILHO.

Quanto ao Taveira Pinto, nada me surpreende, fomos colegas no Liceu, era previsível. Deixo aqui um abraço e o desejo que consigam homenagear o nosso REITOR, da forma que ELE merece.

Conceição Tomé