Nunca conheci os meus avôs. Ambas as minhas avós já eram viúvas quando as conheci, portanto o conhecimento que tenho da palavra «avós» é exclusivamente feminino.
Infelizmente já cá não estão, a lei da vida é assim mesmo, ninguém cá vai ficar para sempre.
A minha avó Branca, mãe do meu pai, vivia em Alegrete, perto de Portalegre, numa casa antiga, sem luz, como quase todas as casa da aldeia. Eram raras as casas com luz eléctrica, somente as mais modernas e das gentes mais abastadas. A cozinha era um lume de chão, com uma chaminé enorme, onde eu gostava de ficar, olhando o lume a crepitar pela noite fora.
Visitávamos Alegrete com alguma frequência, mas para mim era um mundo muito longe do meu, era uma terra onde o preto predominava, das viúvas e das vidas que aquelas gentes levavam. Jovens eram raríssimos e raramente encontrava companheiro de brincadeiras. Por isso, para mim era um sacrifício cada vez que ia até à minha avó Branca.
A minha avó materna, a avó Rosária, nasceu e viveu em Benavila, onde criou seis filhos, vindo morar para Ponte de Sor, onde nós vivíamos. Morava no largo da Feira, local que na minha meninice tinha assim uma auréola de sítio onde morava a juventude mais… irrequieta da vila. Por isso, desde muito novo que aquele pessoal me protegia e acarinhava, o que provocava alguma inveja nos meus amigos.
A avó Rosária vivia numa casa térrea, sem luz nem água canalizada, que ainda hoje existe, embora com muitas modificações. A cozinha era pequena e também tinha um lume de chão, embora não tão grande como o da minha avó Branca. Havia também um pequenino quintal, onde existia uma laranjeira, que perfumava a casa com cheiros que nunca mais senti.
Visitava-a amiúde, ora para lhe levar qualquer coisa dos meus pais, ora para lhe fazer um “mandado”. E cada vez que lá chegava, fosse verão ou inverno, o meu maior prazer era pedir-lhe água. A minha avó dirigia-se então ao armário dos copos, onde estava o meu copo preferido, em vidro transparente, com uma pintura representando o Artur Jorge numa camisola do Benfica! (o Benfica, sempre o Benfica!) Dirigia-se a seguir à bilha de barro que estava por detrás da porta e, com mil cuidados, enchia-mo até ao topo. E digo-vos, meus amigos, era a melhor água que alguma vez bebi! E frequentemente, no presente, cada vez que estou mesmo com sede, a água que bebo me faz lembrar a água da avó Rosária!
Ambas envelheceram, como manda a vida. E faziam algumas temporadas em nossa casa, ora uma, ora outra, por vezes as duas ao mesmo tempo. E divertia-me a vê-las, por vezes “picando-as” com as modernices da vida moderna. Como a televisão!
A minha avó Rosária era mais expansiva e frequentemente dava por ela a vociferar contra os actores das telenovelas. Como no caso da “Escrava Isaura”, onde a ouvi dizer o primeiro palavrão da boca dela:
«- Aquele cabrão do Leôncio…»
Leôncio era a personagem representada pelo actor Rubens de Falco e devo dizer que era uma personagem, no mínimo, execrável. Lembro-me também do sorriso de alegria que lhe encontrei quando, na primeira visita de Rubens de Falco ao nosso país, o actor foi agredido por uma telespectadora mais exaltada! «Ora toma que é para aprenderes!»
Gostava muito de ver televisão. «Ah filho, gostava de saber como, mas o Homem é mesmo inteligente para conseguir pôr estas imagens ali dentro como se fosse verdade!»
Eram duas velhotas muito simpáticas, cada uma com seu feitio, cada uma diferente da outra. Mas que eu nunca esqueci.
E ficará para sempre o sabor daquela água, no Largo da feira!
4 comentários:
Obrigado, Juliana.
Um beijo para você também.
Caro amigo,
Tive mais sorte do que tu.
Conheci as minhas avós e uma bisavó.
A minha avó Rosa, deixou-me marcas que nunca o tempo por mais que seja as apagará.
É e foi um privilégio além da honra que tive em conhecer estas velhotas.
Valeu a pena. Ainda hoje vale a pena viver e conviver com as recoradações.
Um abraço,
Amigo Faires
A memória é aquilo com que nós contamos para perpetuar o que é eterno e belo.
Um abraço
Olá, Rafael!
Gostei muito do texto que escreveste sobre os teus avós.Fizeste-me lembrar o José Saramago e carta à sua avó Josefa.
Quem sabe se não tivesses seguido o caminho da escrita não serias um escritor famoso? Nunca é tarde!
Com esta colectânea de textos do blog, já dava um bonito diário ou outra coisa qualquer.
Eu vou ser fã!
Olha, eu tinha um avô super fantástico, que eu recordo com saudade, com o seu chapéu grande a descer a rua onde ficava a minha casa...
Morreu com a bonita idade de 96 anos... Já para o fim dos seus dias, queixava-se de ouvir muito mal...mas, mesmo assim, eu de vez em quando apetecia-me um geladinho e pedia-lhe uns tostões. Então nessa altura, ele respondia-me «Oh, filha, não ouço nada do que tu dizes...»
Passado algum tempo, eu dizia: «Avô, vamos almoçar» e ele muito ligeiro respondia logo:«É que já lá devíamos estar!»
E são estas lembranças que nos fazem sorrir, sendo também uma maneira bonita de os homenagearmos.
Vivam os nossos avós!
Lurdes Castanheiro
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