quinta-feira, 11 de março de 2010

Sobre Raul Cóias (como escreve bem, o magano!)

Hoje vou-vos falar de uma pessoa que prezo muito, alguém que, não nascendo Pontessorense, se tornou num verdadeiro Pontessorense. O seu nome é Raul Cóias.


Oh Raul, desculpa lá, mas uma pessoa que escreve como tu deve ser reconhecido pelo seu talento. E quando li o último número d’ «aponte», mais de boca aberta fiquei.


Por isso, não te vais zangar comigo por mostrar um dos teus melhores escritos, pelo menos daqueles que eu já li.


E já agora, senhores Autarcas, para quando uma publicação com os escritos do Raul? Aqui fica a sugestão.


E sem mais demoras, aqui vai o artigo (com a devida vénia a «aponte», sempre na vanguarda da informação - espero que a «graxa» dê para pagar o «roubo» do artigo!)


(ah, como eu gostaria de saber escrever assim!)

velhos


Auto, curta-metragem


«Eram três velhos na Praça da aldeia, de dentes em piano partido revolvendo os seus fados. Trituravam a Praça e a aldeia toda. Estavam de dentes afiados, os poucos que tinham, coitados! Eram críticos, cáusticos, verdes e silvestres, suados com a morte, ali ao lado. Esta é que é a filha do Prometeu? Perguntava um do canto do banco à beira da Praça. E havia um silêncio medido, com um sacudir de corpo do outro, de olho desperto.


A certa altura eu entrei para a escola primária, circunscrito na minha ingenuidade febril. As professoras nos finais dos anos cinquenta hospedavam-se na casa dos meus pais, entre bolos de bolota que a minha mãe fazia e o serão para trabalhadores que tocava na telefonia. A minha mãe envergonhava-se que eu fosse descalço para a escola, fosse por que fosse. Não houvesse algum percalço no açúcar do seu doce comprou botas e sacola. Chamava-me, e chamo-me, Raul. Mas no meio da criançada, acabei como «sangue azul», numa alcunha de lengalenga cansada. É o filho do Ramalho? Este que vai calçado? Ele que vá para o carago. Já não vê quem está ao lado? E o velho da ponta disse, «quando tu morreres o que querias que dissessem a teu respeito»? E o outro respondeu: «não fez mal, nem fez bem. Viveu!». E aquele que disse isto, esqueceu-se dos gaiatos. Mas perguntou ao de dente cariado: «e tu? querias que dissessem o quê acerca de ti na morte?». «Que tive dias de azar e tive dias de sorte, mas morreu homem honrado!». E este virou o rosto para o último da fila. «E tu querias o quê? O que querias que dissessem na hora da tua morte?». E o velho respondeu, «parecia morto, ainda mexe!». E nós passávamos ali perto, a caminho da escola. Numa ponta da aldeia, num casarão do meu avô vivia o Ferrador «Prometeu». Hercúleo e divino, mastigando entre fogo ardente ferraduras e fagulhas. Era um Deus Grego, hirsuto que tinha uma filha branda. Às vezes pelas vidraças, entre tinteiros e borboletas, nós víamo-la passar de vestido de cetim leve, na sua bicicleta, com nádegas e seios de gelatina. A feiticeira era fina no seu fálico selim, meio menina, meio senhora, atravessava o átrio da escola e voando na sua vassoura, num silêncio de esmola, subia a rua Nova, atravessava a ponte do fundo, que sobre o ribeiro dividia a aldeia, contornava o beiral e o pinheiro e descia a rua Velha, presa na sua vassoura. Que deusa! Oh, que senhora! Com as cuecas brancas no vestido transparente, que nos tornava o sangue quente.


Havia rituais cruéis e humilhantes. Às vezes, no intervalo, um dos mais velhos gritava «Barrela! Barrela!» e aprisionavam os mais novos, baixavam-lhe as calças e com uma mistura de cinza e ervas viscosas, atafulhavam-lhe as virilhas. Hoje recordo-me disto à saída do «Santo Ofício», o bar mais Ary da cidade. Duas medalhas penduradas. Dois quartos lugares num Rally. Doutor Fernando Branco Rodrigues e senhor Álvaro de Carvalho. Num carro primário, jeep Nissan Terrano I, entre outros de alta cilindrada. Um triunfo. Uma grande vitória nos distritais. Deram-me boleia até Portalegre. Passou-se tudo sem referências. No entanto merecem esta, no meio do artigo, semi-onírico que vou escrevendo. Sonho ou realidade? Sei lá. Corta! Olha a curva! Acelera! Um cheiro a gasóleo, ervas pisadas. As árvores em fuga no canto do olhar. Lama no pára-brisas. Corta! Corta! Corta! Por essa altura, no princípio da Primavera, já eu subia a rua de braço dado com Régio, que entrou no Alentejano, por uma passadeira vermelha. Ele, enfim, mandou engraxar os sapatos. Saí de braço dado com o João Paulo XXIII. Descemos a rua do Comércio. Uma multidão nas janelas e nos passeios. Quem é aquele que vem de túnica branca e com o Cóias? Foi o velho que perguntou do alto da sua sonolência. Corta! Era domingo na noite anterior. Tinha-me deitado tão tarde que adormeci profundamente.


Corta! Acordei. No campo do Eléctrico, ao lado do meu quarto, o jogo de futebol tinha começado. Corta! Corta! Gritava o treinador. Uma andorinha chilreava!


Já havia flores no campo. Frágeis, cintilantes, coloridas, sorrindo ao sabor da brisa…»


Raúl Cóias

2 comentários:

Romicas disse...

Raúl Cóias, ou o professor Cóias, como sempre o conheci, até porque fomos colegas, foi sempre uma pessoa que me mereceu o meu respeito. Convivemos mais na época em que tratámos de assuntos de João Pedro de Andrade e com a família do escritor e patrono da E.B. 2,3 João Pedro de Andrade.
Sempre gostei de ler o que escreve e este texto é uma dessas maravilhas.
Bem haja, Cóias, pelo que escreve.

helder s. pires disse...

Da minha parte, uma atitude arriscada, pois actualmente os intervenientes,por força do tempo de permeio, já não se conhecem.

Dito isto e, mesmo assim, vou arriscar
Há muito, muito tempo que tenho tentado encontrar-te, porque me apeteceu dizer-te Bom-Dia, como Vais. Foi-me muito dificil !
Electrònicamente, para a frente, para trás, dia após dia, passaram meses senão alguns anos, até que por um acaso de sorte encontrei este blog ( tudo me leva a crer que seja teu).
Li e, gostei. Ainda bem que continuas-te, pois o caminho da escrita e do pensamento encontram em ti um bom servidor.
Sei que conheces o José Luis Peixoto, razão também pela qual, ainda mais me impulsionou a encontrar-te.
Tenho falado amiude com Manuel Morujo, sobre várias coisa e, também de ti.
Pediu-me que te enviasse um texto que ele escreveu, de certeza que o apreciarás.

Um grande abraço e até.

(helder duarte sequeira pires)
helderspires@gmail.com

AGORA DO MANUEL MORUJO:

Conjunto Académico Os Atlas24 de Março de 2010 às 12:15
Assunto: Texto
Cá vai o prometido. É um texto, passo a presunção, como escreve o meu autor preferido, José Saramago, o qual leio desde os anos sessenta, quando escrevia no Diário de Lisboa, com o Alexandre O'Neill.
Um abraço
N° 789- Ano XVt 26 de Jutho de 2000 Quarta-feira

Por Manuel Morujo

Reviver o passado em Portalegre

Raulito,
tinha saudades dos teus escritos não daqueles que tinhas por vezes quando eras "guarda - redes" e não só mas também de "pivot" na equipa de andebol do liceu que nos ensinou a ser homens no tempo em que as andorinhas anunciavam a chegada da primavera não aquela que era nossa colega mas a outra que era prenúncio da chegada das cegonhas no tempo em que existia o "Romualdo" e o "João da Praça" o "Marchão" e o "Melhor do Mundo" o "Central" e o "Alentejano" onde jogávamos bilhar e cavalinhos falávamos de outras coisas que não aquelas que desejávamos naquele lugar de professores e intelectuais de poetas e escritores lá no canto perto do boneco que ainda lá se encontra a anunciar a bebida que não bebíamos por preferirmos o tinto e o branco o cigarro e o isqueiro sem licença que usávamos às escondidas do fiscal que ali estava sempre presente para denunciar uma "fraude" à fazenda pública escrevias aqui e ali uma prosa um poema ausentavas-te para meditar e leres lá na serra o Gorky ou o Sartre que nada nos dizia porque não o entendíamos porque não tínhamos a tua astúcia e a tua ousadia alguns julgavam-te "louco" eu admirava a tua sensatez e inteligência mas finalmente voltaste Cóias para quase todos Dias para muito poucos para nos trazeres os escritos estes sim dignos de perdermos algum tempo para nos deliciarmos com a tua prosa feita poesia com uma leitura e interpretação que mais ninguém conseguiu na época dos sessenta que vivemos em conjunto e hoje quase a entrar no terceiro milénio todos vamos contribuir para dares à luz o teu inédito de muitas páginas que descrevem a terra que Régio cantou,
um abraço do Manelito