quarta-feira, 9 de junho de 2010

Gaita!! Já chega!!!

Tenho medo que as pessoas pensem que O Papagaio Daltónico se tenha transformado numa espécie de página de necrologia. mas o que é verdade é que, um dia depois de irmos enterrar o Bruno, fomos todos abalados por mais um acidente, inesperado e estúpido (como inesperados e estúpidos os acidentes sabem ser):

Foi primeira página nos noticiários da hora de almoço, o atropelamento de três pessoas na estação de Riachos, pelo Sud expresse que se dirigia para paris. O resultado foi implacável: 3 mortos (mais uma vez, 3 mortos).



Dois idosos atravessavam a linha, não se apercebendo que o comboio se aproximava a cerca de 160 km por hora. Um funcionário da Refer, apercebendo-se do desastre eminente, correu em direcção dos idosos, mas acabou por escorregar, sendo também ele colhido pelo comboio.

A notícia correu assim, fria e despida de mais pormenores. Mas a certa altura o nome de Ponte de Sor ouviu-se:

- O quê? - e claro que os sentidos se apuraram. O funcionário da Refer era natural de Ponte de Sor!

A partir desta altura todos os pontessorenses sentiram o acidente como se fosse de alguém da nossa família. Seguiu-se mais busca de pormenores e a realidade surgia, nua e crua: o funcionário colhido pelo comboio e natural de Ponte de Sor chamava-se Fernando Matos!

E lembrei-me do Fernando, foi meu aluno há uns anos atrás! E a sua história cruza-se comigo uma vez mais, pois conheci o Fernando ainda ele era um petiz, ainda antes de ser meu aluno.

O seu irmão foi, provavelmente, o meu primeiro aluno 'difícil', no meu segundo ano de docência. O Jeremias (assim se chamava o irmão) fez parte da minha primeira direcção de turma, corria o ano de 82 ou 83. Era um aluno difícil, temperamento rebelde, agravado pela morte do pai pouco tempo antes. As atitudes de indisciplina acumulavam-se e, um dia, já sem paciência, ordenei-lhe (nesta época ainda se 'ordenava' aos alunos...) que ficasse na sala depois dos restantes alunos da turma saírem. Assim fez e tentei-lhe, na minha inexperiência, chamá-lo à atenção das suas atitudes, a que ele me respondia com algum desprezo, tentando-me e desafiando-me. Resolvi jogar mais duro e ser mais assertivo: chamei-lhe a atenção que, com a perda do pai, ele era o 'homem' da casa, que o irmão, o Fernando, precisava dele, assim como a mãe... Então notei uma mudança da sua atitude: ficou sério e, não sei como, abraçou-se a mim, a chorar... falando das saudades do pai! E foi naquele momento que 'ganhei' o Jeremias! Não que ele tivesse mudado completamente a sua maneira de ser, mas que houve uma melhoria, lá isso sim.

Um dia tive necessidade de chamar a mãe, por causa de mais uma das «habilidades» do Jeremias. E a senhora lá chegou, com uma criança pela mão. Era o Fernando, 3 ou 4 anos de gente, que logo me conquistou, chamando «senhor professor» por tudo e por nada, assim um pouco espanholado...

O Jeremias teve um fim triste. Não completou os estudos, abandonou a escola cedo. Esteve na Força Aérea e, cada vez que vinha a Ponte de Sor e me via, atravessava a estrada, cumprimentando-me duma maneira que todos em redor não deixavam de reparar. Era assim o Jeremias! Como mais tarde seria o Fernando!

Devido ao seu porte atlético, Jeremias foi contratado por alguns bares de alterne e «boites» como guarda costas das 'meninas'. Lembro-me que, na última vez que o vi, me confidenciou que estava a pensar em deixar aquela vida, que era muito suja e perigosa... Um ou dois meses depois, a notícia chegou, cruel, célere e fria: havia suspeitas de que tinha sido assassinado, mas o corpo não aparecia. As suspeitas eram mais que muitas, mas as buscas foram infrutíferas. Até que se encontrou um cadáver num monte de lixo, mas ao qual faltava a cabeça! Testes foram feitos e muitos anos se passaram até que foi feito o funeral ao Jeremias. Mas segundo sei, a situação do seu assassinato ainda não está resolvido. Enfim, Justiça «à la portugaise»!!!

O Fernando apareceu na escola, alguns anos depois do nosso primeiro encontro. Aluno também um pouco rebelde, mas mais facilmente... «domável» do que o Jeremias. Não foi um aluno brilhante, longe disso, mas cumpria minimamente com o que se lhe pedia. Também era mais brincalhão do que o Jeremias.

E agora o Fernando! Que mais dizer? Que mais imaginar? A mágoa duma mãe que perdeu dois filhos daquela maneira? Da esposa do Fernando? Dos seus dois filhos?

Se Deus existe, devo dizer que tem andado um bocado distraído!

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